01 julho 2008

O 46o passageiro

Sexta-feira, 14h14, sol forte, luminosidade perene, calor visível. Em um minuto eu embarcaria em uma viagem conhecida. Nada de mais. Não esperava nada além do que cinco horas de sonolência, leve irritação em momentos esparsos e alguns pensamentos existenciais carregados pelo passar lento das nuvens. Tinha sido assim desde a primeira viagem rumo a Belo Horizonte para fazer vestibular. Vieram outras, Juiz de Fora, Belo Horizonte e finalmente o vai-e-volta entre Goiânia e Uberlândia. O caminho se repetiria dezenas, centenas de vezes e se repete até hoje nas visitas aos meus pais. Nesse trecho aprendi algo fundamental. Dentre as certezas da vida uma é infalível: a imprevisibilidade. Até a mais rotineira sina não possui constância. E em viagens longas nós não queremos isso. Nós queremos apenas sentar, calados, com um fone de ouvido e de preferência sem ninguém ao lado pra puxar conversa. Nós queremos apenas chegar ao destino. Às vezes até penso em não descer na "parada do lanche" pra que nada minimamente extraordinário aconteça. Nesse dia, assim como no início de tudo, primeiro foi o verbo. Fiat lux, abracadabra, independência ou morte, hey-ho-let's-go. Depois dessas expressões sempre veio alguma merda. Naquele dia foi "vou caganeirá". Literalmente.
As palavras foram vociferadas por uma mulher de 1,70 e uns 300 centímetros de largura. Ela era gorda. E me desculpem os politicamente corretos, ela era uma balofa sem proporções. Poxa, existem magros e gordos. Ela era gorda. Ela sentava na última fileira de poltronas do ônibus. Eu estava na fileira da frente. E, por isso, ouvi o "mãe. vou caganeirá". "Nossa", pensei. "Como isso vai caber no banheiro?". Todos sabem, banheiro de ônibus é um caixote. E balança. É como se estivéssemos dentro de uma maraca na mão de um percussionista cubano. À princípio achei graça daquilo. Ela indo "caganeirá" e entalando no banheiro. Só não imaginei que ela realmente teria extrema dificuldade em se desentalar da porta do banheiro.
Imagine uma gorda segurando nas bordas da porta tentando se equilibrar, tentando bater a porta. Tudo isso depois de "caganeirá". Importante: a porta do banheiro ficava logo à minha frente. O cheiro que saía de dentro daquilo era estonteante. Era o odor do limbo. Como podia tanta podridão dentro de uma mulher? O que ela teria colocado pra fora? Um gambá morto?
Fiquei sem ar. O tempo se estendia. Os segundos pareciam minutos. Ela soltava grunhidos envergonhados enquanto se debatia à porta da latrina: "opá", "ai", 'etâ". Lá da frente a massa começou a protestar: "ei, aí, quem peidou?" "que cheiro é esse?" "pára tudo motorista". Eu além de tudo temia que ela caísse em cima de mim. Nessa hora, encurvado, eu já tampava o nariz com a camiseta.
Bum! A gorda conseguiu bater a porta do banheiro. Ela se sentou ao lado da mãe (uma mulher mais velha que até então não ajudou em nada). Naquele momento dividimos o espaço com um outro passageiro: o alívio. Mas ele estava apenas de passagem. A carniça fecal tomou conta de todo o ar. Eu quase via as moléculas de oxigênio sujas, quase que enlameadas, da cor daquilo que vocês conhecem. Oxigênio sujo de bosta. As janelas travadas. O ar-condicionado parecia não conseguir filtrar o esgoto gasoso. Retornava uma brisa podre.
A viagem continuava. O cheiro permanecia. Agora, com aquele aspecto aromático de banheiro recém usado em todo o ônibus. Suportável, vai. Mas...e não é que a gorda se levantou! Arregalei os olhos e clamei baixo aos céus: "não, meu Deus... de novo". Dessa vez não ouvi as palavras. Não precisava. O "vou caganeirá" estava implícito. E assim foi. A luta da gorda para fechar a porta depois de liberar o resto do gambá morto foi menor. Mas o cheiro não era breve, nem leve. Parecia uma visita indesejada. Castigava certamente até os ácaros que habitavam escondidos o tapete do acabamento interno do ônibus. Era um odor anti-vida. O cheiro nos acompanhou até a rodoviária.
Na procissão lenta dos passageiros na descida do ônibus, alguns murmuravam: "nossa", "cruzes", "ei, ai, vige Maria". Embaixo, após pegarem suas bagagens e de serem acariciados pelos primeiros ventos noturnos, era visível o sentimento de ressureição dos passageiros. Não olhei pra trás. Não procurei pela gorda. Em casa, relatei o acontecido à minha mãe que só comentou: "coitada".