20 junho 2011

O bolo da Dona Zezé

Duas ou três colheres de um ingrediente a mais podem fazer um estrago danado em um bolo. Dona Zezé sabia que naquele dia tinha feito um dos piores bolos de sua vida. Trinta anos de bar e mercearia nas costas não era pouca coisa. As duas portas serviam também de lanchonete pros moleques que saiam da Escola Estadual Afonso Arinos, no bairro da minha cidade. Depois da aula e antes do almoço era tempo de comer um quadrado de 10 por 10 centrímetros de doce de leite de duas cores, uma mais clarinha e a outra morena. O doce era um dos doces mais doces, mais doce impossível de tão doce. Repito tanto a palavra doce pra dar uma idéia da docitude desse doce de doce de leite. Doce mesmo! Doce. E eu chegava em casa e bebia um copo de água pra tentar tirar o doce da língua. Minha mãe já me esperava pro almoço com panelas fumegantes e sem tempo pra um moleque cheio de tempo. O resto do dia pra gastar a toa. Jogar Atari, Enduro e Hero. Depois jogar botão sozinho e quando os amigos chegassem, fazer um campeonato. Eu tinha e ainda tenho guardado um time do Flamengo. Era especial, daqueles de acrílico. Eu mesmo tinha colado o distintivo do Mengão, que veio um dia na revista Placar. Aliás, na minha coleção dava pra disputar um campeonato em cada país diferente, dava pra ficar a semana inteira jogando. Era a minha Fifa. Pra jogar com o meu time especial, eu tinha uma palheta amarela. Escolhida depois de muito esmero. Ela não era das moles, era mais espessa e por isso não entortava com facilidade, assim, eu tinha de compensar e tirar a força na hora de jogar os botões. Habilidade pura. Cada um se especializa em fazer certas coisas. O homem é mesmo um macaco esperto. Mas há uma diferença, o talento. Com prática os medíocres aprendem. Com prática e talento, os geniais criam. Assim Dona Zezé era considerada. Uma mulher genial na hora de colcoar a mão na massa. Na massa de pão, de bolo e de biscoito. Mas aquele dia ela errou a mão. Tudo começou com um telefonema da sua nora. Aninha era boa menina. Mesmo as previsões mais catastróficas de Dona Zezé estavam erradas. "Tão pequena, tão magrelinha, parece uma galinha seca. Mulher assim não presta, quer tudo na mão. Num tem tutano", dizia. Com o tempo, se enganou. O fato era que Aninha contava uma notícia besta pra ela e pro mundo. Pra Dona Zezé era equivalente a um terremoto. Diga-se, um abalo sísmico atingindo apenas uma casa na vila, na cidade, em um povoado qualquer. Aninha avisava: "Domingo o almoço é aqui Dona Zezé", intimou. Antes desse casamento, o dia era reservado pra mesa de panelas fulmegantes da Dona Zezé. Ela sabia o que os três filhos gostavam de comer. Comida predileta é a da mãe e não me venha com desfeita! Até acho que a expressão "cuspir no prato que comeu" foi dita pela primeira vez por uma mãe desiludida com a frágil empolgação do filho pra um prato feito pela nora. Pois é, assim se fez com Dona Zezé. "Aprendi a fazer a lasanha de panqueca que o Luiz tanto gosta!", empolgava Aninha. Peraí, era como se alguém jogasse com o meu time especial de botão do Flamengo. "E eu fiz do jeito que a senhora faz!", completou a nora. Putz, aí era como se ainda tivesse jogado com minha palheta. A velha engoliu seco. Daí pra diante o fim da conversa nem prestou atenção. Mal desligou o telefone e Seu Chico, seu marido, já pediu qualquer coisa, coisa pequena e levou um esfrega. Saiu resmungando "credo, muiê doida, sô". Nesse dia não tinha doce mais doce dos doces. Tinha um bolo de chocolate. A cara dele era bonita com a cobertura brilhando de tão preta. O dinheiro dava e resolvi comprar. À tarde tinha rodada do Campeonato Brasileiro de Futebol de botão da molecada da rua Francisco Sales. Não fosse por uma diarréia de contorcer o espírito e arrepiar o corpo eu poderia ter ganho. Mas aquele dia alguma coisa passou da conta. Exagerei na comida. Depois do almoço ainda comi doce de compota de goiaba. Com requeijão mole. Bom, pelo menos foi isso que respondi quando minha mãe perguntou o que "será que você comeu que te fez mal?". Ela mal sabia que a culpa era da Aninha, nora da Dona Zezé, mulher do Seu Chico, pai do Luiz seu filho e marido da Aninha.