02 novembro 2008

O dia em que a chuva não quis chover (paz dos santos)


Foram cinco dia de calor insuportável. O sol fazia qualquer cidade parecer filial do inferno. O suor brilhava na testa dos populares. Naqueles dias o vendedor da loja queria o time na primeira divisão do campeonato, o dono da construtora esperava que o crédito imobiliário não diminuísse, o cabo eleitoral esperava ser pago pelo candidato derrotado. Naqueles dias, entre os desejos individuais havia um anseio coletivo: todos queriam a chuva. Olhar pro céu virou regra. Lá no céu, em um breve encontro com São Benedito, São Pedro reclamava que a orelha pegava fogo. "Poxa, negão, não me esquecem!". Era o santo mais lembrado. Só uma chuva podia lavar a cidade, refrescar o asfalto, levar na enxurrada o cocô do cachorro que a empregada da madame levou pra passear. Até a dona da sorveteria reclamava: "tô vendendo? Tô. Mas podia chover um pouco". A manhã do dia seguinte veio cinza. O sol escondido. As nuvens escuras. Só faltava a água ca ir. "Vai chover", dizia o povo pro povo. Chegou a tarde e nada. Chegou a noite, o céu avermelhou, parecia o fim do mundo. E nada. Quem fechou a janela pra dormir, teve de acordar no meio da noite pra escancarar o desejo geral. "Porra, cadê a chuva?". Na outra manhã o sol ainda piscou o olho entre as nuvens. O sol parecia dizer: aí, galera, sentiu minha falta? Irônico, esse filho-da-puta. O jornal do almoço levou a meteorologista pra falar ao vivo. A frente fria estava sobre a região, mas havia um pressão térmica. Era questão de tempo, a chuva ia cair. Caiu não. O mesmo telejornal mostrou uma reunião de alguns pesquisadores da universidade local. Eles discutiam o que já havia virado fenômeno. A chuva não chove. Todo mundo tinha uma teoria pra explicar o negócio. Alguns pastores proclamavam o castigo divino. Os agronegociantes exerciam um de seus ofícios, o choro. O porteiro do prédio achava que a água evaporava antes mesmo de chegar ao chão. "Moço, o calor é demais. É ingual chapa quente, sabe?". Diziam até que a chuva tava com medo da violência da cidade. Ou do trânsito. Fato é que a chuva se guardava. Resistia lá no céu. E assim foi ficando. Por um tempo, a solução de quem tinha dinheiro foi comprar terrenos em locais de chuvas esparsas, como eram chamados. "Venha para o Condomínio Portal da Brisa Molhada, ótima localização para chuvas esparsas". Mas chuva virou cocô de cobra, ninguém via. Com o passar dos anos, décadas, a chuva foi virando seresta, disco de vinil. A chuva ganhou ares de nostalgia. Quem falava dela recordava com saudosismo: ah, e como era delicioso dormir com o barulhinho dos pingos caindo no telhado. Claro que nesse mundo pra tudo se dá um jeito. Inventaram um métodos, umas engenharias. Casa agora tinha chuva própria. Era só apertar um interruptor que uns chuveirinhos externos despejavam a água sobre a casa. No começo era coisa de rico, depois já dava pra parcelar no carnê. Mas chuva natural não tinha mais. Ah, água também não. Quer dizer, tinha, mas só lá nas hidro-reservas legais. Uns parques onde havia uns córregos que salvaram de extinção. Tudo era protegido a sete chaves. Havia o risco do tráfico de água de verdade. Esqueceram São Pedro. Lá no alto, ele agora não cuidava mais do setor de torneiras, mas ainda guardava as chaves do céu. Podia passar mais tempo com alguns dos amigos que também não tinham mais muito trabalho. Santo Antônio, por exemplo, o casamenteiro, até tentava consolar: rapaz, o povo agora deixou a gente em paz. Em paz.