27 novembro 2008

Saramago e os eliminados

“A tragédia em Santa Catarina já deixa 97 mortos, 79 mil desabrigados e um clima de caos nas ruas -ao menos 24 pessoas foram presas por saquear casas e mercados, até mesmo a cavalo, levando de bebidas a geladeiras. Com medo de perder o que restou, famílias voltam às áreas de risco para proteger pertences, enquanto fome e sede levam milhares às filas de doação de alimentos, que duram até seis horas. 64 mil pessoas estão isoladas e mais de 240 mil, sem luz. A falta de água as faz poupar cada gota, até na descarga do banheiro. E o quadro pode piorar.”

Li esse trecho publicado hoje no jornal Folha de São Paulo e me lembrei do Saramago. Não especificamente do escritor, mas de sua obra. A descrença com a humanidade e suas fraquezas. A falta de bondade, de valores morais. Bondade que o próprio escritor português citou em sua última passagem pelo Brasil:

“A palavra bondade hoje significa qualquer coisa de ridículo. É preciso conquistar, triunfar. Ninguém se arrisca a dizer que seu objetivo é ser bom. Querer ser bom em uma época como esta é se apresentar como voluntário para a eliminação”, disse Saramago.

Um assaltante que ri ao executar a vítima caída no chão em um supermercado. Um jovem frio conta como esquartejou uma garota. O completo vazio moral de sua noiva: ela diz que todo mundo erra e que ninguém pode julgá-lo, porque todo mundo mata. Todo mundo mata? Será que há verdade nisso mesmo? Talvez, para ela, seja assim.

Os adolescentes que violentam uma garota de 15 anos em uma festa e divulgam o vídeo na internet. O internetês de uma geração vazia. Não há regras. Tudo pode, nada é errado. Se for errado, e daí? Um policial mira a cabeça de um passageiro porque o carro não parou. Mata um jovem, um pai, um irmão, um filho. Para o policial ele não era nada disso. Era um alvo.

Bondade, ética, respeito. Imagino o dia em que essas atitudes estarão na moda. De tão esquecidas, de tão pouco usadas. Nesse dia vai ter a palavra 'bondade' em capa de livro. Claro, sempre com um fim comercial, um propósito importante para carreiras, para os negócios. “Aprenda a ser um líder bondoso”, “Bondade e sucesso podem andar juntos”, “Pense no outro e ganhe dinheiro”, são alguns exemplos. Vocês duvidam?

Hoje essas palavras não valem nada. Em poucas ocasiões da história da humanidade o individualismo esteve tão marcante como agora. Uma das faces mais escrotas do capitalismo. A concorrência extrapolou as fronteiras das corporações, chegou aos indivíduos de vez. Ninguém quer ser comum. Ninguém quer ser mais só mais um. Ninguém pode ser só mais um. Nessa paranóia coletiva vale sequestrar a namorada, matá-la, ou então forjar que foi sequestrado para chamar a atenção. Depois vai contar a história no Orkut. Vai participar da comunidade “Sequestrei minha ex-namorada”. O que vale é ter o poder em suas mãos. O poder é alterar o rumo das coisas. É atirar na cabeça do passageiro do carro. É fazer acontecer.

O assassinato, o roubo, o estupro se tornam a confirmação do 'eu'. As crianças já aprendem desde cedo que precisam crescer e “fazer acontecer”. O estímulo aos líderes. O enfraquecimento do coletivo. E sem valores morais para nortear a vida e ajudar a explicar o mundo e, também quem vive nele, vale tudo para fazer acontecer. Quem imaginaria que os 15 minutos de que Andy Warhol falou seriam tão sangrentos?

E quem diria, a insanidade individualista chegou de vez também na religião. Nas igrejas, os fiéis gritam: “Vou ter o meu carro! Eu mereço a minha casa! Deus vai me dar, ele é meu pai, meu Senhor, eu sou filho Dele”. Tem muita referência a primeira pessoa nessa frase, não tem? E os outros filhos do seu Pai? Não merecem? Quem disse que não merecem? Foi o Pai? É Ele que não dá nada a esses renegados? Se não dá, esses irmãos bem que podiam receber uma ajudazinha, não é? Tenho certeza que o verdadeiro Pai gostaria de ver isso. Os filhos se ajudando. Bondade. Afinal, a única coisa que temos depois do primeiro sopro de vida, do primeiro choro é o outro.


Todos no mesmo barco. Sim, não estamos sozinhos. Mas por que será que a presença dos outros incomoda tanto?

Ainda falta pouco mais de um mês para o fim do ano. Esse texto relata alguns fatos melancólicos de 2008. Não duvido que teremos mais até o dia 31 de dezembro. E depois começa tudo de novo. Se o tempo não pára, a humanidade menos ainda. Ninguém pode parar pra pensar. É preciso acordar, comer, correr, trabalhar, correr, com pressa. Se você parar será um voluntário para a eliminação.